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Linchamentos e violência sexual contra crianças provocam indignação na Bolívia

Por Bolívia Verifica | Bolívia

Por Isabel Mercado

Atualizado em 28 de junho, 2022 às 10:07 am

A Bolívia tem índices alarmantes de violência sexual contra menores, e é um dos países onde o linchamento é um recurso frequente que se confunde com justiça comunitária. Um caso uniu os dois problemas esta semana e gerou reações nas redes sociais

De camiseta e chinelo e às pressas. Foi assim que Miguel Ángel Salazar (24 anos) foi transferido de Santa Cruz para La Paz, após ser salvo de um linchamento por seus vizinhos em Yapacaní, Santa Cruz. O jovem foi detido após ser acusado, junto com seus três irmãos, de abusar sexualmente de um menino de 10 anos. O menino, que teria sido alvo de maus-tratos por dois anos, contraiu HIV-AIDS e atualmente está em coma.

O jovem foi transferido para o presídio de segurança máxima de Chonchocoro, em La Paz, devido aos riscos à sua vida depois que os moradores da cidade onde ocorreram os abusos tentaram fazer justiça com as próprias mãos. A mãe da criança pediu ajuda à população de Yapacaní para cuidar do filho e implorou que se fizesse justiça em seu caso. Ela disse ainda que a criança está traumatizada com a violência a que foi submetida.

Os agressores são quatro irmãos vizinhos do menino. Dois deles são menores de idade de 15 e 17 anos, e os outros dois têm 23 e 28 anos. O homem de 28 anos morreu no ano passado de AIDS.

Os quatro irmãos têm antecedentes criminais devido ao uso de armas e drogas, mas não foram processados ​​por abuso sexual apesar dos registros. Acredita-se que houve pelo menos mais uma vítima desses abusos em Yapacaní.

Linchamentos e abusos, dois problemas recorrentes

Algumas das consequências da crise na justiça boliviana são a falta de credibilidade da população e o sentimento de abandono diante de crimes e ofensas recorrentes. A Bolívia é um dos países onde os linchamentos acontecem com mais frequência. Somente neste ano até o momento, quatro casos de tentativas de execuções foram registrados publicamente, todos relacionados com populações revoltadas que decidem fazer justiça com as próprias mãos para alertar criminosos, na ausência do estado de direito em seu contexto. A ausência de forças policiais em muitos municípios e áreas do país incentiva esses atos.

O direito fundamental à vida é garantido pela Constituição Política do Estado e por instrumentos internacionais de direitos humanos, e sua privação pelas próprias mãos constitui crime sancionado pela legislação penal vigente. Em 2013, o Comitê de Direitos Humanos recomendou que a Bolívia “tome medidas urgentes para garantir que os linchamentos sejam investigados sem demora, que os autores sejam devidamente processados ​​e punidos, e que as vítimas recebam uma reparação adequada.

O Estado deve fortalecer a participação da Polícia e do Ministério Público na punição e prevenção do crime, e reforçar as campanhas de prevenção e conscientização, inclusive nas escolas e nos meios de comunicação”.

Causas de linchamento entre janeiro de 2005 e novembro de 2011, segundo tipo de crime (porcentagens)

Fonte: Elaborado a partir de fontes jornalísticas (La Prensa, La Razón, El Alteño, Extra, El Diario, Los Tiempos y Oponión, El Deber, Estrella del Oriente, Correo del Sur, El Potosi e La Patria)

No entanto, o sentimento de desproteção e falta de justiça é especialmente crescente devido aos altos índices de violência contra mulheres e crianças no país. No primeiro trimestre de 2022, houve 611 casos de abuso de crianças, meninas, meninos e adolescentes em toda a Bolívia. Esse número reflete uma média de sete agressões sexuais a menores todos os dias, um dos números mais altos dos últimos anos no país.

A Lei 548 do Código das Meninas, Meninos e Adolescentes prevê que “as meninas, meninos e adolescentes têm o direito de viver, desenvolver-se e ser educados em clima de afeto e segurança em sua família de origem ou, excepcionalmente, quando isso não for possível ou contrário ao seu interesse, numa família substituta que assegure a convivência familiar e comunitária.

O artigo 318 (Corrupção de Menina, Menino ou Adolescente) sustenta que “quem, por atos libidinosos ou por qualquer outro meio, corromper ou contribuir para a corrupção de menor de dezoito anos, será punido com pena privativa de liberdade de três a oito anos”.

No entanto, a violência contra as crianças tem crescido desproporcionalmente nos tempos de pandemia. O segundo crime mais denunciado em 2021 foi o abuso sexual, com 2.638 casos, seguido de estupro, com 2.249, estupro de crianças ou adolescentes, com 2.078 casos, e estupro, com 1.548, segundo dados divulgados em nota da Procuradoria Geral do Estado.

Este tem sido um sinal de alerta para a sociedade, que pede medidas mais duras para os agressores e campanhas preventivas por parte do Estado.

Pena de morte

“Por que não o deixaram ser linchado?”, “Pena de morte já”, “cadeia e morte” e outras expressões semelhantes foram expressas nas redes sociais como reação a este caso.

O sofrimento do menino de Yapacaní e de sua mãe, que só soube da situação do filho quando ele adoeceu com AIDS, revelaram uma realidade dilacerante e frequente.

Sobre os termos, “Yapacaní”, “estupro” e “criança”, o Facebook registrou um pico de produção de conteúdo e interação virtual que ultrapassou um milhão.

Esse pico coincidiu com o aumento de postagens e interações em torno dos termos “pena de morte”, “castração” e “linchamento”.

Autoridades que se referiram à pena de morte ou castração

Além das reações da população nas redes sociais, foram inúmeras as respostas de políticos e autoridades sobre este caso. O presidente Luis Arce Catacora, por meio de sua conta no Twitter, pediu “todo o peso da lei” para os responsáveis ​​pelo caso de estupro de uma criança em Yapacaní, Santa Cruz, que indignou a população.

Numa primeira mensagem, o presidente expressou seu repúdio a este tipo de acontecimento e disse que são urgentemente necessárias “soluções estruturais”. “Dor e indignação, não há como descrever o sentimento que nos aflige pelo ocorrido com o garotinho, vítima de estupro em Yapacaní, mas não basta repudiar esses tipos de acontecimentos, é preciso promover soluções estruturais para que não voltem a acontecer.”

Na mensagem seguinte, ele exigiu “todo o peso da lei” para os responsáveis ​​por este caso e referiu-se à ajuda recebida pela vítima e sua família.

Post: Luis Alberto Arce Catacora (Lucho Arce)
Dor e indignação, não há como descrever o sentimento que nos aflige pelo ocorrido com o garotinho, vítima de estupro em Yapacaní, mas não basta repudiar esses tipos de acontecimentos, é preciso promover soluções estruturais para que não voltem a acontecer.

Legisladores do MAS e da oposição também se manifestaram.

  • PENA DE MORTE: Deputado Héctor Arce (MAS) https://www.facebook.com/watch/?v=1144969242727521
  • PENA DE MORTE: Senador Erick Morón (Creemos) https://www.facebook.com/watch/?v=397809115443402
  • CASTRAÇÃO QUÍMICA OU PENA DE MORTE: Deputado Daniel Rojas (MAS) https://www.atb.com.bo/pol%C3%ADtica/legisladores-plantean-debatir-sobre-castraci%C3%B3n-qu%C3%ADmica-para-violadores
  • Bettsy Ortíz (vereadora de Trinidad): https://www.facebook.com/watch/live/?ref=watch_permalink&v=299329205744366

O prefeito de Cochabamba, Manfred Reyes Villa, também citou a castração química como solução.

https://www.facebook.com/watch/?v=712064146674068

Veículos que debateram penas mais duras

Os veículos de comunicação acompanharam de perto o caso e mostraram os sinais de indignação da população em suas manchetes e conteúdo.

https://www.facebook.com/105698078300185/posts/352207193649271.

https://www.facebook.com/200586404047/posts/10160716288699048.

https://www.facebook.com/156461556546595/videos/1069786920634904.

https://www.facebook.com/657619507616245/posts/5469995613045253.

https://fb.watch/dycIaxr2w6/.

Esta é uma publicação de um reconhecido jornalista que acompanha casos de violência.

https://www.facebook.com/110148791147638/posts/385196806976167.

Vídeo do linchamento

Como exemplo da importância que a mídia, as redes sociais e os cidadãos deram a este caso, mostramos a viralidade do vídeo filmado no momento em que um dos acusados ​​deste abuso foi retirado do presídio onde estava detido em Yapacaní para ser despido e linchado pelos moradores daquela cidade.

*A Sala de Democracia Digital é uma ação da FGV DAPP, em parceria com Animal Político, no México, Bolivia Verifica, na Bolívia, Confidencial, na Nicarágua, Chequeado, na Argentina, Espacio Público, no Chile, Linterna Verde, na Colômbia, e Ojo Público, no Peru. Nós monitoramos o debate público nas redes sociais pela América Latina.

A análise original está disponível no site do Bolivia Verifica aqui.